A escritora Conceição Evaristo já participou de diversas edições da Festa Literária das Periferias (Flup), no Rio de Janeiro, mas este ano, na 15ª edição, será de uma maneira diferente. Uma das mais importantes vozes da literatura contemporânea é a primeira personalidade homenageada, em vida, pelo festival. 
Para o diretor, curador geral e idealizador da Flup, Julio Ludemir, ao homenagear a autora, a Flup “reconhece a escrevivência como um gesto político e poético, capaz de reencantar o mundo a partir das vozes negras e periféricas”.
Nos últimos anos, na edição de 2024 da Flup, a homenageada foi a historiadora, pesquisadora e ativista, Beatriz Nascimento; em 2023, o escritor Machado de Assis e a Mãe Beata de Iemanjá, escritora e sacerdotisa de um sagrado sem bíblia, fundadora do terreiro de Candomblé Ilê Axé Omiojuarô, em Miguel Couto, na Baixada Fluminense; em 2022, o escolhido foi o compositor e músico Pixinguinha; no formato híbrido virtual e presencial; em 2021, o compositor e músico Aldir Blanc; e em 2020, houve outra homenagem dupla, à antropóloga, ativista e escritora, Lélia Gonzalez e a escritora, cantora, compositora e poeta Carolina Maria de Jesus.
“A gente não sai do campo semântico das homenagens e tributos que a gente faz, porem a gente nunca ousou em homenagear um autor em vida. A gente propôs esse desafio da Conceição ao homenagear um autor em vida, o que traz uma responsabilidade muito maior, de partilhar com Conceição toda e qualquer ideia, para que nós a homenageemos e a festejemos, porque tanto ela, como nós, aceitamos esse desafio”, diz Ludemir.
Para o diretor, a história da Festa Literária é um pouco a história de Conceição. “O crescimento e a visibilidade que a Flup tem tido nos últimos anos, dialogam minimamente com o mesmo público, com o mesmo Brasil da Conceição Evaristo, que vem crescendo consistentemente ano a ano, mês a mês, semana a semana dia a dia, a cada segundo aparece um novo leitor da Conceição Evaristo”, afirmou Ludemir à Agência Brasil.
Ele disse ainda que a escolha da escritora ao mesmo tempo homenageia o Brasil das ações afirmativas, das cotas, do que está se desensibilizando, principalmente, a partir de uma política pública.
“Em nenhum lugar, as ações afirmativas tiveram um impacto tão amplo e rápido como no Brasil. Nós temos uma nova intelectualidade, temos uma nova classe artística e ninguém representa isso melhor do que Conceição Evaristo. Homenagear Conceição Evaristo é homenagear a obra dela, a militância dela, a biografia, mas tanto a obra, quanto a militância e a biografia dela, são tão relevantes exatamente porque dialogam com este Brasil popular, da mulher negra, com esse Brasil que produz utopias permanentemente”, analisou o idealizador da Flup.
“Quando você estiver cansado, olhe para uma mulher negra grávida e você vai ver que existe futuro. Um povo que foi escravizado, que teve toda a história que o povo negro tem e que é um povo que jamais deixou de olhar para o futuro, jamais deixou de acreditar quase nessa coisa bíblica de crescei e multiplicai-vos”, ressaltou.
Segundo Ludemir, quando se homenageia Conceição, está “vendo nela a voz, o corpo, a trajetória, a obra, desse Brasil novo, desse Brasil que continua sendo mais homofóbico, mais transfóbico, que mais mata mulheres, mas por outro lado, não existe esse fenômeno Conceição Evaristo pelo mundo”.
“Ela produziu e produz uma obra, que hoje em dia ocupa no imaginário brasileiro, o mesmo lugar que o Jorge Amado ocupou, de tocar no coração das pessoas. Quando se lê cada vírgula da Conceição, tem a sensação de que está entrando em contato imediato com a história do Brasil, com o cotidiano”, acrescentou.
Segundo o idealizador da Flip, para além desse cenário, Conceição consegue também “produzir e tocar a chave do amor de uma forma que poucas pessoas na história do Brasil, está refletida nas crianças, nas mulheres negras que adoram a escritora e nas pessoas que querem tocar e tirar fotos com ela”.
“Não é uma coisa de fã, é uma coisa de se ver na Conceição Evaristo. Quando a gente homenageia a Conceição, está homenageando o Brasil, esse país que passou por ditaduras e conseguiu sair das ditaduras. Está homenageando o país que condenou Bolsonaro, o que os Estados Unidos não fizeram. A gente está homenageando a história de um povo que não desistiu nunca da possibilidade de criar um país melhor para seus filhos”, pontuou.
Programação
Com o tema Ideias para Reencantar o Mundo: Escrevivências, Sonhos e Batidões, a Flup 2025 vai ocorrer entre os dias 19 e 23 e 27 e 30 de novembro, no Viaduto de Madureira, na Central Única das Favelas (CUFA), que entre outras atividades, recebe no primeiro fim de semana, o Festival Literário da Igualdade Racial (FLIIR), com mesas e oficinas dedicadas à valorização da literatura negra e indígena. Outro local é o Zê êne, que sedia as semifinais do Slam BR, Campeonato Brasileiro de Slam Poetry, realizando duas disputas intensas de poesia falada: a primeira das 19h às 21h, e a segunda das 21h30 às 23h30.
No segundo fim de semana, o Zê Êne fará atividades das editoras parceiras e a CUFA terá uma mostra especial dedicada ao cineasta britânico Steve McQueen. Tudo isso no bairro de Madureira, zona norte do Rio.
Apontada como uma das mais relevantes festas literárias do Brasil e espaço de encontro da palavra, do corpo e do território, a Flup “celebra a força da imaginação e da escrita como práticas de resistência e reconstrução simbólica”.
A programação da 15ª edição da Flup reúne autores, artistas e pensadores do Brasil, África, Caribe, América do Norte e Europa. Além de Conceição Evaristo, que participará de todos os dias da festa, Achille Mbembe, Ana Maria Gonçalves, Mireille Fanon Mendès-France, Eliana Alves Cruz, Steve McQueen entre outros. Nos shows já estão previstas as apresentações de Sandra Sá, Mano Brown, Luedji Luna, Jonathan Ferr e Majur.
A curadoria internacional, repetindo o que ocorreu no ano passado, é assinada pela professora e pesquisadora franco-senegalesa Mame-Fatou Niang, que define, a partir de sua presença na Flup, como surpreendente e desafiador, compreender a presença negra na cultura brasileira.
“Pra mim, o Brasil é um mistério. Eu cresci assistindo novelas, amando Pelé, o futebol e o Carnaval em fevereiro, mas eu não sabia que o Brasil era um país negro, porque não é isso que é mostrado”, comentou em texto divulgado pela Flup.
França- Brasil
Incluída na programação da temporada cultural França-Brasil, a Flup assume papel central fortalecendo o compromisso como “um espaço de trocas entre saberes periféricos, línguas ancestrais, músicas e tradições que atravessam o tempo e os territórios”.
“A França, o Instituto Francês e a embaixada francesa têm sido nossos parceiros mais presentes na história da Flup. Em todos os anos a gente teve o suporte da França. Nos piores anos de nossa vida, mesmo no auge do bolsonarismo, do Temer, no auge do momento de não termos Ministério da Cultura, não termos Secretaria de Cultura, a gente sempre conseguiu trazer autores franceses, sempre conseguiu alguma verba francesa, para fazer o nosso festival”, comentou.
Ludemir destacou que a presença da Flup no ano França-Brasil foi inevitável diante da solidez dessa parceria. “A Flup, como projeto, convenceu antes o mundo do que o Brasil. Quando a gente chegou com a ideia de fazer um festival literário em uma favela do Rio de Janeiro, a França abriu as portas”, afirmou, acrescentando que a Flup voltou a ter parceria também com o Reino Unido, por meio de edital do British Council.
Fonte: Agência Brasil


